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“É como entrar no hospital com o tratamento pronto”: Azul aposta no Chapter 11 e escancara falhas do sistema brasileiro

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Companhia vai renegociar dívidas com credores internacionais com o Chapter 11 (Divulgação/ Azul)(Divulgação/Azul)

A decisão da Azul de recorrer ao Chapter 11, mecanismo da Justiça norte-americana que permite a reestruturação de empresas sem a interrupção das operações, vai além de uma saída emergencial para reorganizar dívidas. Ao optar por esse modelo, a companhia aérea brasileira aponta para uma fragilidade institucional doméstica: a falta de previsibilidade jurídica e de um ambiente regulatório eficiente e confiável para conduzir processos complexos como o de recuperação judicial.

O movimento, embora tecnicamente internacional, lança luz sobre temas urgentes da aviação nacional, desde a ausência de uma rede de segurança robusta para setores estratégicos até a dificuldade histórica do Brasil em oferecer segurança aos investidores. O uso do modelo pre-packaged, em que os principais credores já chegam com acordos alinhados, reforça a estratégia da Azul de manter controle sobre a narrativa, minimizar desgastes e seguir operando com o mínimo de turbulência possível. Mas também exige precisão cirúrgica: qualquer ruído pode comprometer toda a engrenagem.

Para analisar os riscos, os sinais positivos e os recados embutidos nessa decisão, o Mercado & Eventos ouviu Marcello Marin, contador, administrador, mestre em Governança Corporativa e especialista em Recuperação Judicial. A seguir, ele comenta os principais pontos da reestruturação da Azul.

M&E – O que significa, na prática, a Azul ter optado pelo Chapter 11?
MM – O Chapter 11 é um mecanismo de proteção judicial dos EUA que permite a uma empresa continuar operando enquanto reorganiza suas dívidas. Para além de uma saída emergencial, essa decisão mostra que a Azul está buscando controlar o processo de reestruturação com método e previsibilidade. Em termos de governança, isso sinaliza uma escolha estratégica por um ambiente institucional mais seguro, com regras claras, que dá aos investidores e credores mais confiança no processo de recuperação.

“Modelo pre packeged” é como se a empresa entrasse no hospital já com diagnóstico e tratamento alinhados

M&E – O modelo “pre-packaged” traz quais vantagens e riscos?
MM
No modelo pre-packaged, os acordos com os principais credores já estão costurados antes mesmo do pedido formal de recuperação. É como se a empresa entrasse no hospital já com diagnóstico e tratamento alinhados. A vantagem é a agilidade: o processo corre mais rápido, com menos incertezas e menos desgaste na mídia. Mas o risco é que, se alguma peça sair do lugar, como um credor que mude de ideia ou uma projeção que não se concretize, o castelo pode ruir. Exige altíssimo grau de coordenação e confiança.

marcello marin "É como entrar no hospital com o tratamento pronto": Azul aposta no Chapter 11 e escancara falhas do sistema brasileiro
Marcello Marin, contador, administrador, mestre em Governança Corporativa e especialista em Recuperação Judicial (Arquivo Pessoal)

M&E – Essa escolha expõe a fragilidade do ambiente jurídico brasileiro?
MM – Sim, isso mostra uma clara preferência por um sistema com mais previsibilidade jurídica. O Chapter 11 tem décadas de jurisprudência e é familiar para os investidores globais. No Brasil, os processos de recuperação judicial são mais lentos, litigiosos e com menor participação ativa dos credores. Essa escolha diz muito: ainda precisamos amadurecer nosso ambiente regulatório se quisermos competir globalmente em termos de segurança jurídica.

M&E – Há riscos em relação à nacionalidade da empresa?
MM – Existe sim o risco de mudança de controle, o que poderia afetar a nacionalidade da empresa, e isso tem implicações sérias, já que o setor aéreo é estratégico e regulado. O Brasil exige que empresas aéreas tenham controle majoritário nacional. Se essa regra for desrespeitada, pode haver impacto na concessão de rotas e nos direitos de operação. Para o mercado, esse movimento pode ser lido como uma injeção de confiança, valorizando a empresa, mas acende alertas de governança e necessidade de fiscalização rigorosa.

M&E – Por que o governo não entra como apoio direto nesse tipo de situação?
MM – Revela um contexto de austeridade fiscal e baixa disposição política para socorrer empresas privadas, mesmo em setores essenciais. O governo teme críticas por usar recursos públicos em companhias privadas, ainda mais num setor que já teve resgates no passado. Isso também mostra como o setor aéreo tem pouca margem de erro: ele é estratégico, mas não conta com uma rede de segurança institucional robusta no Brasil.

“O setor aéreo tem pouca margem de erro”

M&E – O processo da Azul se diferencia dos casos da Gol e Latam?
MM – A Azul entrou muito mais organizada, com acordos e financiamentos já encaminhados. A Gol, por exemplo, entrou em Chapter 11 num cenário mais caótico, com maior incerteza sobre o futuro. A Latam também passou por turbulências e ajustes internos mais longos. No caso da Azul, há uma articulação clara e bem estruturada com os stakeholders, o que pode acelerar o processo e dar mais chances de sucesso.

M&E – Outras grandes aéreas já usaram o Chapter 11?
MM – Sim. Grandes aéreas como a American Airlines, Delta e United já usaram o Chapter 11 para se reorganizar. Na prática, é um instrumento visto com naturalidade nos EUA. A diferença está na complexidade das operações, em mercados emergentes, como o Brasil, o uso desse mecanismo por uma empresa nacional implica uma engrenagem mais delicada de ajustes entre jurisdições.

Na prática, o chapter da Azul sinaliza que companhia não pretende, neste momento, se fundir com outra grande concorrente

M&E – A reestruturação descarta fusões, como se especulava antes?
MM – Na prática, sim. Ao entrar em reestruturação com foco em retomar sua própria autonomia financeira, a Azul sinaliza que não pretende, neste momento, se fundir com outra grande concorrente. Isso pode até esfriar o movimento de concentração no setor a curto prazo, mas pode abrir espaço para outras parcerias, inclusive regionais.

M&E – Qual o impacto disso na concorrência?
MM – Com menos dívidas e mais caixa, a Azul pode sair mais agressiva comercialmente. Isso força as concorrentes a se mexerem também, seja cortando custos, buscando fusões ou investindo em rotas regionais. Pode ser o estopim de uma nova onda de consolidação no setor, com alianças estratégicas ganhando força.

M&E – A Justiça brasileira pode interferir no processo?
MM – Sim. Mesmo com o processo correndo nos EUA, credores e ex-funcionários no Brasil podem questionar cláusulas, pedir bloqueios ou tentar reverter decisões. A Justiça brasileira precisa reconhecer e respeitar a jurisdição americana nesse caso, o que não é automático. É um ponto sensível do processo.

M&E – Quais os sinais de que a reestruturação está funcionando?
MM – Alguns sinais são:

• Cumprimento dos prazos e metas do plano apresentado
• Geração de caixa operacional positiva
• Aumento da ocupação dos voos e redução dos custos por assento
• Recuperação do crédito com fornecedores
• Revalorização das ações e melhora nos ratings das agências de risco

M&E – O que o governo pode fazer para apoiar o setor sem intervir diretamente nas empresas?
MM – Focando em medidas estruturais: melhora da infraestrutura aeroportuária, redução de tributos sobre combustíveis, estímulo à aviação regional e segurança jurídica para investimentos. Apoios pontuais podem acontecer, mas com regras claras e critérios técnicos, para evitar o velho dilema de salvar quem grita mais alto.

M&E – A infraestrutura precária atrapalha a recuperação da Azul?
MM – Com certeza. De nada adianta reorganizar a empresa se os aeroportos continuam saturados, ineficientes ou com baixa conectividade regional. A reestruturação da Azul depende, também, de um ecossistema funcional, e nisso o Brasil ainda deixa a desejar. É um gargalo que precisa ser atacado em paralelo.

M&E – Qual o papel do comitê de credores no processo?
MM – O comitê é como um fiscal dos fiscais. Ele monitora a gestão da empresa durante o processo, garantindo que as decisões estejam alinhadas com os interesses dos credores e da continuidade do negócio. Serve para evitar abusos, conflitos de interesse e decisões unilaterais.

M&E – E como garantir a transparência da gestão durante a recuperação?
MM – Com reuniões periódicas com a diretoria e com os credores, publicação de relatórios claros e auditáveis, monitoramento das remunerações e bônus da alta gestão, avaliação crítica de contratos e renegociações, e envolvimento de auditores externos e consultorias independentes.

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