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Quem paga a conta? Especialistas, autoridades e passageiros debatem a judicialização aérea no Brasil

Por Janaína Brito e Beatriz do Vale

A judicialização no setor aéreo brasileiro tem sido um tema recorrente, mas ganhou novo fôlego após uma recente postagem de Jérôme Cadier, CEO da Latam, no LinkedIn. Ele apontou que eventos como colisões com aves (bird strikes) resultam em prejuízos para as companhias, atrasos para passageiros e maior volume de processos judiciais. A declaração gerou forte repercussão, dividindo opiniões entre os que acreditam que o Brasil tem uma cultura excessiva de judicialização e os que veem falhas na prestação de serviço das empresas aéreas. Neste domingo (23), um acidente semelhante ocorreu com uma aeronave da Gol.

Só no ano passado foram registradas 2.145 colisões entre aeronaves e pássaros no Brasil, segundo Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Isso significa uma média de 12,4 colisões a cada 10 mil pousos e decolagens. Incidentes como esse causam prejuízos tanto às companhias aéreas, que em determinadas situações precisam tirar as aeronaves danificadas de rota para manutenção, quanto aos próprios passageiros, que podem ter voos cancelados.

Para entender as razões para o alto número de processos, se há falhas regulatórias ou operacionais e quais medidas poderiam mitigar esse problema, o M&E entrevistou com autoridades, especialistas do setor e passageiros para entender melhor o tema.

ABEAR

A LATAM não tinha interesse em uma fusão com a Azul, enquanto a Azul já visava essa possibilidade desde o início do acordo. (Divulgação/Latam)
Latam registrou 562 colisões entre aves e aeronaves em 2024, que afetaram 30mil passageiros por cancelamentos e atrasos de voos (Divulgação/Latam)

A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR) pontuou que acompanha com preocupação o excesso de judicialização no transporte aéreo no Brasil, que gera um custo anual de R$ 1 bilhão para o setor. Desde 2020, o volume de processos contra as companhias aéreas cresceu, em média, 60% ao ano, sendo que 10% dos processos ajuizados contra as quatro principais empresas do setor foram distribuídos por somente 20 advogados/escritórios. As ações envolvem captação irregular de consumidores, compra de créditos judiciais e um comércio irregular de vouchers de viagens. Os dados foram coletados pela plataforma Spotlaw a partir da análise de mais de 400 mil processos judiciais em todo o país.

A Abear ressalta que tem buscado alertar o Poder Judiciário e a Ordem dos Advogados do Brasil para a atuação dos chamados sites abutres.

A associação destaca ainda que estimula trabalhos de prevenção para evitar presença de aves nas áreas próximas aos sítios aeroportuários. A entidade participa de comitês e grupos de trabalho que discutem o birdstrike na aviação brasileira. Um deles é a Comissão Nacional de Risco de Fauna, com a participação de todos os stakeholders da indústria envolvidos com o tema, com gerenciamento da Secretaria de Aviação Civil (SAC) como política de Estado.)

ANAC

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Anac também se posicionou (Reprodução/Gov.br)

A Agência Nacional de Aviação Civil disse que as disposições sobre os direitos dos passageiros e regras a serem seguidas pelas empresas aéreas no transporte aéreo regular estão contidas na Resolução nº 400/2016, onde são estabelecidas as regras a serem seguidas pelas empresas aéreas para apoio e acomodação aos passageiros em caso de atrasos e cancelamentos de qualquer natureza.

“Incidentes aeronáuticos com pássaros, por sua vez, são incidentes aeronáuticos, cuja apuração e prevenção é uma competência do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa).”

O arcabouço regulatório da Anac neste sentido aborda o manejo de fauna em aeródromos e procedimentos de segurança operacional.

SENACON

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Responsável pela gestão, disponibilização e manutenção da plataforma, bem como pela articulação com demais órgãos e entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Reprodução/Senacon)

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) reforça a Resolução nº 400/2016 da Anac, de que as companhias aéreas devem informar imediatamente os passageiros sobre qualquer alteração em casos de atraso ou cancelamento de voos, justificando o motivo e fornecendo atualizações a cada 30 minutos sobre a previsão de partida.

Dependendo do tempo de espera, ainda são obrigadas a oferecer assistência material, que inclui:

  • comunicação (a partir de 1 hora de atraso)
  • alimentação (a partir de 2 horas)
  • e acomodação ou hospedagem (a partir de 4 horas)

“As reclamações sobre o SAC das companhias aéreas têm sido crescentes e, por isso, é necessário aprimorar e dar maior efetividade, inclusive como instrumento para redução de litígios judiciais.”

A Senacon explica que houve uma redução nas reclamações sobre as companhias aéreas devido ao aumento significativo durante o período que compreendeu a pandemia da Covid-19, e isso impacta na queda do índice atual. “Entendemos a complexidade do setor e é importante reconhecer que os períodos de crise estão sendo enfrentados e respondidos com brevidade, há sempre o que avançarmos para construirmos, de fato, a harmonização das relações de consumo”, destacou ao M&E.

AENA BRASIL

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O trabalho de falcoaria é uma das estratégias para afugentar outras aves que possam atrapalhar operações aéreas (Divulgação/Aena)

Comprometida em garantir a segurança e a eficiência das operações aéreas sob sua administração, a Aena Brasil, operadora aeroportuária, desenvolve um trabalho estratégico para prevenir colisões entre aeronaves e animais nos aeroportos sob sua administração, que podem atenuar motivos de atrasos e cancelamentos e, consequentemente, processos.

Gerenciamento de Risco de Fauna

Desde 2020, a empresa implementa medidas eficazes que já resultaram em uma redução de 23,64% no índice de colisões nos seis aeroportos do Nordeste. Em 2023, foram registradas 19,44 colisões para cada 10 mil movimentos nesses aeródromos, contra 25,46 no ano anterior.

O Gerenciamento de Risco de Fauna inclui monitoramento contínuo, vistorias diárias na área operacional e diversas técnicas de afugentamento de aves, como sons de alta intensidade, fogos de artifício, buzinas e falcoaria, com o uso de aves de rapina treinadas para afastar outras espécies. Além disso, a Aena mapeia fatores atrativos à fauna em um raio de 20 km ao redor dos aeroportos, alertando as autoridades para ações corretivas.

A empresa mantém equipes biólogos em seus aeroportos. Além da prevenção, esses profissionais realizam levantamentos detalhados sobre as colisões, reportando os dados ao Cenipa para aprimorar as estratégias de mitigação. Esse trabalho segue rigorosamente as diretrizes internacionais, os regulamentos da aviação civil brasileira e a legislação ambiental, reforçando seu compromisso da Aena junto a seus clientes, passageiros e companhias aéreas.

AIRHELP

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Empresa atua somente quando as companhias aéreas não respondem aos questionamentos ou queixas de seus clientes (Divulgação/AirHelp)

Para Luciano Barreto, diretor-geral da AirHelp no Brasil, a recuperação do mercado aéreo brasileiro observada nos últimos anos trouxe algumas ineficiências com responsabilidades das próprias companhias aéreas: “Ao acompanharmos o índice de elegibilidade de indenizações, o indicador vem aumentando, principalmente em épocas de alta temporada.”

Ao M&E, enfatizou que é fundamental que o passageiro conheçam seus direitos: apenas 20% dos viajantes sabem o que fazer em determinadas situações. Para começar, o viajante está protegido pelo Código de Defesa do Consumidor e pela legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), com leis que definem claramente as responsabilidades das companhias aéreas sempre que houver problemas de voo.

“Uma das missões da AirHelp é atuar nessa conscientização, para passageiros com problemas antes ou depois do voo e querem uma reparação.”

Desde 2013, a AirHelp já auxiliou mais de 2,5 milhões de pessoas a receberem indenização por atraso ou cancelamento de voo em todo o mundo.

A AirHelp vem ampliando seus esforços para ajudar todos os passageiros a conhecerem os seus direitos e serem assistidos durante atrasos e cancelamentos de voos e receberem indenizações quando forem elegíveis.

Mas o que de fato leva o passageiro a optar pelos meios legais?

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Anna Vitória Silva, advogada especialista (OAB/PR Nº.117.089) (Divulgação/Anna Vitória Silva)

A advogada Anna Vitória Silva, especialista em casos de passageiros lesados em suas viagens, destaca que todos os dias, passageiros enfrentam situações como cancelamentos, atrasos de voos e overbookings. “No entanto, o fator decisivo para a judicialização dessas situações é, sem dúvida, a falta de assistência”.

Ela explica que em casos de cancelamento ou atraso, é comum que a companhia aérea deixe o passageiro sem informações, alimentação, acesso à internet, meios de comunicação e hospedagem, fazendo com que fique exposto por horas dentro do aeroporto, aguardando a realocação em outro voo.

“Fica evidente que não são os cancelamentos e atrasos em si que motivam os processos, mas sim a ausência de suporte ao consumidor”

Mas existe outro lado, quando a empresa supre essas necessidades básicas e muitos passageiros optam por não ingressar com uma ação judicial. “Assim, fica evidente que não são os cancelamentos e atrasos em si que motivam os processos, mas sim a ausência de suporte ao consumidor, que muitas vezes passa horas no aeroporto sem qualquer ajuda de custo para alimentação ou, em alguns casos, precisa até mesmo arcar com novas passagens para chegar ao seu destino”, enfatizou.

Questionada se é possível evitar que as companhias recebam esses processos, a advogada acredita que as empresas poderiam reduzir a judicialização implementando uma melhor organização em seus sistemas, além de preparar melhor seus funcionários para fornecer informações e prestar assistência adequada aos passageiros.

Além disso, ela pontua que mesmo nos processos judiciais movidos contra as companhias, é possível constatar essa desorganização: “Muitas vezes, as empresas sequer possuem registros sobre o fornecimento de vouchers para alimentação dos passageiros ou sobre a hospedagem em hotel, quando aplicável.”

“Com treinamentos adequados e uma estrutura organizacional mais eficiente, as companhias poderiam oferecer um serviço mais satisfatório e humanizado”.

Há também a possibilidade de melhoria através da humanização dos canais de comunicação:  “Algumas empresas, como a própria Latam, utilizam majoritariamente sistemas robotizados, o que dificulta qualquer solicitação que o cliente precise fazer à companhia”.

Vale ressaltar que o Brasil possui uma legislação protetiva em relação aos direitos do consumidor. Esse direito é regulamentado de forma semelhante ao que ocorre no Brasil, conforme a Resolução nº 400 da ANAC, que assegura comunicação, alimentação e hospedagem nesses casos.

No entanto, os países da União Europeia adotam um sistema de compensação automática em casos de cancelamento, atraso e overbooking, além de garantirem o direito à assistência material. Por isso, o índice de judicialização na Europa é mínima, pois os passageiros têm direito a uma compensação financeira imediata, reduzindo a necessidade de ações judiciais.

No caso do Brasil, a judicialização se torna o principal meio de garantir a compensação pelos danos sofridos, porque as indenizações não são concedidas automaticamente pelas companhias aéreas

Aumento do número de processos

Quanto ao aumento do número de processos contra as companhias aéreas, Anna disse que é importante considerar que esse crescimento também está diretamente relacionado ao aumento do número de consumidores do serviço de transporte aéreo.

“Anos atrás, o uso desse serviço não era tão acessível. Embora o custo das passagens continue elevado e em constante aumento, o maior poder aquisitivo da população brasileira facilitou o acesso ao transporte aéreo. Além disso, programas de pontos e milhas tornaram esse acesso ainda mais viável”, concluiu.

Essa tendência é confirmada pelos números do setor em 2024, quando o mercado atingiu a marca de 118 milhões de passageiros transportados.

Processo

O tempo de um processo judicial contra uma companhia aérea pode variar entre duas semanas e um ano, pois depende da comarca onde o processo está tramitando. “Hoje existem diversas plataformas e meios de formalizar acordos com as companhias diretamente, o que faz com que muitos dos processos ingressados não cheguem até a sentença, visto que são finalizados antes mesmo de audiências”, contou.

Relato de um caso recente

Um cliente idoso, acompanhado de um familiar que é portadora de deficiência auditiva e diabética em grau avançado, comprou passagens para viajar da cidade de Cascavel – PR a Belém – PA, com conexões em Curitiba e Campinas. A viagem, no total, duraria 8 horas.

Ao desembarcarem em Curitiba, a companhia aérea informou que o voo estava cancelado. No entanto, aproximadamente 10 outros passageiros estavam na mesma situação. A companhia realocou todos para um voo no dia seguinte, com um itinerário que incluía mais uma conexão. Eles chegaram ao destino final (Belém – PA) 23 horas após o horário contratado. Durante esse período, não receberam alimentação e foram informados de forma escassa.

“Ao procurarem meu escritório, realizamos a análise adequada e identificamos que o voo ocorreu normalmente. A companhia aérea mentiu ao alegar se tratar de um cancelamento, quando, na verdade, o ocorrido foi um overbooking. A empresa adotou essa conduta de omitir a verdade porque, em casos de overbooking em voos domésticos, os passageiros têm o direito de ser compensados de forma imediata com 250 DES (Direitos Especiais de Saque), uma unidade de conta criada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que serve como ativo de reserva internacional. O DES não é uma moeda física, mas sim uma cesta de moedas que inclui o dólar americano (USD), euro (EUR), renminbi chinês (CNY), iene japonês (JPY) e libra esterlina (GBP). O valor de 250 DES corresponde a cerca de R$ 1.867,50 por pessoa. Sendo assim, diante da conduta completamente abusiva com os passageiros, o caminho óbvio foi a judicialização do caso, para obtermos a indenização que é direito do consumidor e muito merecida, diante de todo o transtorno e descaso sofridos”, finalizou a advogada Anna Vitória Silva.

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Dr. Muriel Fróes Camargo (Divulgação/Fróes Camargo)

O M&E também conversou com o advogado Dr. Muriel Fróes Camargo. Não diferente de Anna, ele aponta que a judicialização está voltada às falhas operacionais internas da própria companhia aérea, que na maioria das vezes acaba culminando no cancelamento/atraso de voos de forma arbitrária e abusiva, gerando gastos extras, causando estresse e transtornos para o consumidor, e por fim se eximindo de todo ônus legal: “Ou seja, afetando a prestação do serviço como um todo”.

Paralelo a isso, existem as cobranças abusivas das próprias empresas, que se aproveitam da fragilidade dos consumidores para cobrar valores a título de taxas e multas, que na maioria das vezes são extremamente excessivas e arbitrárias, segundo Fróes. Outro ponto é que o consumidor não consegue resolver essas ocorrências de forma administrativa, visto que a maioria das companhias se mostram irredutíveis no âmbito extrajudicial.

“Portanto, em casos como esse, na normalidade, não resta uma alternativa ao consumidor senão a propositura de demanda judicial”.

Para o advogado, se as empresas melhorassem a prestação dos serviços como um todo, adequando o preço da passagem para a realidade atual, além de criar mecanismos para que o consumidor consiga resolver o problema de forma rápida e segura, conseguiria evitar processos.

Direito do Consumidor

Em resumo, o órgão brasileiro tem como principal objetivo proteger a parte mais vulnerável na relação de consumo, qual seja, o consumidor. “Em tese, as companhias aéreas possuem grandes departamentos jurídicos, e por isso que na maioria das vezes não há a resolução consensual do problema”, enfatizou o Dr.