
No dia em que a Gol celebrou o seu aniversário e completou 24 anos, as companhias aéreas Gol e Azul anunciaram a assinatura de um memorando de entendimento que marca o início das negociações para uma fusão histórica no setor da aviação brasileira. Caso concretizada, essa fusão consolidará uma única empresa que deterá 60% do mercado aéreo do país, transformando profundamente o panorama do setor. Este movimento reflete uma tendência global de fusões e aquisições como estratégia de sobrevivência e expansão em mercados cada vez mais competitivos.
A configuração do acordo de Fusão entre Gol e Azul
De acordo com o memorando, a fusão está condicionada ao encerramento do processo de recuperação judicial da Gol nos Estados Unidos, previsto para abril de 2025. A futura companhia será estruturada como uma “corporation”, sem controlador definido, com a Abra, holding que já controla a Gol e a Avianca, atuando como a maior acionista. A gestão será dividida entre ambas as empresas: o presidente do conselho será indicado pela Abra, enquanto o CEO será indicado pela Azul. Essa liderança compartilhada é uma tentativa de criar sinergias entre as culturas organizacionais das duas companhias.
As marcas Gol e Azul serão mantidas separadamente, mas as operações deverão se integrar gradativamente. Isso inclui o compartilhamento de aeronaves e rotas, ampliando a conectividade entre grandes cidades e destinos regionais. Essa estratégia também permitirá otimizar a utilização da frota e reduzir custos operacionais. Mas o que podemos esperar e quais lições já aprendemos sobre este tipo de negócio?
Lições do passado: o caso Air France-KLM
Um dos exemplos mais notáveis de fusão bem-sucedida no setor aéreo é o grupo Air France-KLM, criado em 2004. Antes da fusão, a KLM enfrentava sérias dificuldades financeiras e necessitava de um parceiro estratégico para sobreviver. A fusão permitiu às duas companhias compartilhar recursos, integrar redes e fortalecer sua posição competitiva contra outros gigantes europeus, como o Lufthansa Group e a International Airlines Group (IAG). Embora as marcas tenham sido mantidas, a criação de um modelo corporativo unificado resultou em eficiências operacionais significativas.
No entanto, a experiência da Air France-KLM também ilustra os desafios inerentes às fusões, como a necessidade de alinhar culturas corporativas e enfrentar resistências regulatórias. Ainda assim, quase duas décadas depois, o grupo permanece como um dos principais players da aviação global.
Impactos no mercado brasileiro
A fusão entre Gol e Azul tem o potencial de redefinir o setor aéreo no Brasil. A criação de uma empresa com tamanha participação de mercado pode gerar preocupações em relação à concorrência. Com 60% do mercado sob seu controle, a nova companhia terá maior poder de precificação, o que pode impactar negativamente os consumidores caso não sejam estabelecidos mecanismos regulatórios eficazes.
Por outro lado, a integração pode trazer benefícios substanciais, como o fortalecimento da malha aérea regional, historicamente subaproveitada no Brasil. Além disso, a fusão pode aumentar a competitividade internacional das duas empresas, permitindo-lhes expandir suas operações para novos mercados. E sabemos bem: este é o caminho estratégico da Gol – e a Azul não ficava atrás.
Leia também: Tire suas dúvidas! Respondemos 10 perguntas sobre a fusão da Gol e Azul
Gol esclarece sua situação no acordo entre Abra e Azul; veja posicionamento da companhia
Veja nota oficial do Grupo Abra sobre fusão com a Azul
Paralelos em outros setores
O setor de aluguel de veículos no Brasil também testemunhou uma fusão significativa com a união entre Localiza e Unidas em 2020. Essa junção criou uma companhia líder no mercado de mobilidade, com capacidade ampliada para oferecer soluções inovadoras. A experiência dessa fusão reforça a ideia de que uniões estratégicas podem beneficiar tanto empresas quanto consumidores, desde que bem geridas e acompanhadas por órgãos reguladores.
Desafios e oportunidades com a fusão entre Gol e Azul
Para que a fusão entre Gol e Azul seja bem-sucedida, será fundamental superar desafios como o alinhamento cultural, a integração operacional e a obtenção das aprovações necessárias do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Também é imperativo que a nova empresa mantenha um equilíbrio entre a geração de eficiências e a preservação da concorrência. Vamos combinar, uma possível barrada do Cade sobre este acordo é quase que improvável – ou seja, a fusão deve acontecer. Só não sabemos ainda como será realizado e se a gestão será feita da maneira correta, beneficiando toda a cadeia – ou prejudicando ainda mais o atrasado setor aéreo no Brasil.
Casos que não deram certo também ensinam (e muito!)
Embora fusões e aquisições possam trazer grandes benefícios, a história recente apresenta exemplos de acordos que enfrentaram turbulências ou fracassaram. O caso da Boeing e Embraer é emblemático. Anunciada como uma parceria estratégica em 2018, a joint venture entre as duas empresas foi desfeita em 2020, com a Boeing alegando a ocorrência de “condições não atendidas” para finalizar o negócio. A Embraer, por sua vez, considerou a decisão unilateral da Boeing uma ruptura injustificada, resultando em um desgaste para ambas as partes. A desvalorização das ações e a falta de sinergias efetivas são apontadas como consequências negativas desse processo. Além disso, questões de soberania tecnológica e resistências regulatórias desempenharam papéis decisivos no colapso da negociação.

Outro exemplo relevante foi a tentativa de fusão entre Varig e TAM no início dos anos 2000. Apesar de anunciada como uma solução para a crise no setor aéreo brasileiro, a operação não se concretizou devido a divergências estratégicas, problemas financeiros e a incapacidade de alinhar as operações das duas companhias. Ainda em 2010, as duas empresas desistiram oficialmente da fusão.
Uma das últimas tentativas envolveu a entrega, ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de uma proposta para criar uma terceira empresa que administraria o compartilhamento de voos. Contudo, a união de ativos não se materializou, e a Varig acabou sucumbindo à crise financeira, enquanto a TAM seguiu um caminho independente, culminando em sua fusão com a LAN Airlines anos depois, criando a Latam.
Esses casos demonstram que, sem planejamento detalhado e uma execução cuidadosa, fusões podem resultar em falhas que não apenas prejudicam as empresas envolvidas, mas também impactam negativamente o mercado como um todo.
Análise de especialista

O M&E conversou com Fernando Canutto, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Societário, para falar sobre o tema. Para Canutto, “baseando-se em exemplos históricos como o caso Boeing-Embraer e Varig-Gol, é possível identificar algumas precauções que as companhias aéreas devem tomar para evitar falhas na integração”.
Entre elas, estão:
Planejamento estratégico de integração – “Tanto no caso da Boeing-Embraer quanto da Varig-Gol, a integração das operações não foi suave, em parte devido à falta de um planejamento estratégico bem estruturado. As empresas precisam desenvolver planos detalhados de integração que levem em conta as diferenças culturais, sistemas operacionais, práticas de gestão e infraestrutura. No caso entre Azul Gol, devemos acrescentar que operam aeronaves completamente diferentes”, explicou.
Cultura organizacional – “A fusão entre duas grandes empresas do setor aéreo envolve a integração de culturas corporativas distintas, o que pode ser um grande desafio. A falta de alinhamento entre as culturas pode gerar resistência à mudança, baixa moral entre os funcionários e falhas operacionais”, complementou.
Alinhamento de estratégias comerciais – “Durante a fusão, pode haver uma tendência a subestimar as diferenças estratégicas, como as abordagens de preços e a forma como as empresas atendem aos seus clientes. Para evitar falhas, as empresas devem alinhar suas estratégias comerciais, adaptando-as ao novo contexto e ao perfil da nova empresa”, concluiu Fernando.
Se bem-sucedida, a fusão entre Gol e Azul poderá colocar o Brasil em uma posição de destaque no cenário global da aviação, criando uma companhia capaz de competir com grandes grupos internacionais. No entanto, a experiência de casos passados mostra que o caminho para o sucesso não está livre de turbulências, exigindo planejamento cuidadoso e execução eficiente.
Por agora, só nos resta esperar. Estamos diante de uma fusão promissora entre Gol e Azul ou corremos o risco de repetir velhos erros?